terça-feira, 10 de março de 2015

Aspectos legislativos da maconha

   Para falar sobre os aspectos legais envolvendo a maconha, convidei o advogado Artur Antônio Grando, que hoje é o responsável pelo texto em itálico. Obrigada, Artur!! :)

"Os recentes movimentos na política mundial, em especial nos EUA e Uruguai, têm dado novo ânimo às discussões acerca da legalização ou não da maconha, seja ela para fins medicinais ou mesmo para uso volitivo.
  O uso medicinal não será objeto deste diálogo, pois minha opinião pessoal é que tudo o que possa ser benéfico para uso medicinal, analisando-se o caso concreto, deve ter seu uso autorizado, quer por trazer avanço nos tratamentos, quer seja para redução dos sintomas. Obviamente, quem cuida de casos da saúde são os profissionais que atuam em na área, os quais têm, portanto, a palavra final.
   Mas e então? O consumo de maconha deve ou não ser legalizado no Brasil?
    Antes de respondermos a questão, vamos dar uma viajada?
   Um dos maiores mitos legais que existe é que a maconha e outras drogas são legais na Holanda. Todas as drogas são ilegais nos Países Baixos. É ilegal produzir, possuir, vender, importar e exportar drogas. No entanto, o governo criou, há décadas, uma política que tolera o uso de maconha em alguns termos e condições específicos.
    Cafés podem vender apenas drogas leves e não mais que cinco gramas de maconha por pessoa por dia. A venda para menores de 18 anos é terminantemente proibida. Embora o uso ao ar livre seja proibido, ele também é "tolerado" na maioria dos locais.
    Os holandeses adotaram tal política (vista grossa) não em razão de sua vontade de liberar o uso da maconha, mas por reconhecerem que é impossível, atualmente, proibir totalmente as pessoas de usarem drogas e que, com recursos escassos, é melhor destinar os parcos recursos para combater grandes criminosos e o fornecimento de drogas pesadas. Para essas, tanto a posse quanto o comércio, o transporte e a produção são expressamente proibidos e reprimidos com eficiência – as penas chegam aos 12 anos de prisão.

 Em 2011/2012 a Holanda proibiu a venda de maconha para turistas. A medida foi criada para evitar a estratégia de traficantes de países vizinhos, como a Alemanha e a Bélgica, que compram grandes quantidades de maconha na Holanda para depois vender do outro lado da fronteira, causando problemas diplomáticos e de criminalidade nas regiões de divisa.

Outro grande mito legal acerca da maconha reside na Jamaica de Bob Marley. Lá é ilegal uso, cultivo ou venda de maconha. Mas, se folha de maconha for, algum dia, incorporada a alguma bandeira, será na bandeira nacional da Jamaica.
Em termos legais para uso estritamente medicinal, os maiores expoentes são Canadá e Israel. Em ambos países, o uso diverso do medicinal continua sendo crime.
O Canadá foi o primeiro país a permitir o uso da maconha para fins medicinais. Os canadenses podem cultivar maconha e consumir a erva se tiverem receita médica e um documento de autorização emitido pelo governo. Importa referir que o Canadá tem uma das melhores políticas e indicadores de saúde do mundo.
O fato de Israel ter o Estado fundido à sua religião dominante (Judaísmo) nos surpreende quando lembramos que nele a maconha para fins medicinais foi permitida há 22 anos (1993). Atualmente, trata-se de uma das mais avançadas legislações acerca do uso medicinal da maconha, o qual compreende o tratamento de milhares de doenças.


Relativamente à descriminalização, a península ibérica nos traz as legislações curiosas, mas inovadoras.
Em Portugal, a partir de 2001 ninguém mais pode ser preso pelo uso de drogas. Contudo, inovou ao estabelecer uma diferença quantitativa para definir o que é uso e o que é tráfico, contrariamente do que faz o Brasil que, em razão da semelhança entre os diversos verbos que definem o que é tráfico e o que é uso, bem como da subjetividade do magistrado ao apreciar o caso concreto, a distinção entre consumo e tráfico é um caos.
Os nossos colonizadores estabeleceram que a posse de até 25 gramas de maconha será considerado posse para consumo e, a partir disso, será considerado tráfico.
Já os espanhóis, um povo notoriamente caliente e festivo, resolveram criar uma espécie de “clubinho” da maconha. Na Espanha, existem associações em que os associados podem retirar 20 gramas de maconha por semana. A condição é que a associação não tenha fins lucrativos, que os associados sejam maiores de 18 anos, já usuários da erva e que, ainda, tenham sido indicados por outro associado. VIP. O intuito das associações é retirar a fonte de lucro das mãos dos traficantes.
Proporcionalmente, o continente com o maior número de países em que a maconha é descriminalizada é a América. Contribuem mais significativamente para a constatação os países da América Latina, como Argentina, Peru, México, Colômbia e o liberal Uruguai. Seria uma herança remota dos colonizadores?
O mais novo maconheiro é o Uruguai. Considerado o fundador da legalização da maconha, a ex-República da Cisplatina legalizou a maconha em dezembro de 2013. Lá, qualquer pessoa maior de 18 anos pode adquirir até 40 gramas da erva por mês do próprio governo. As pessoas podem plantar até seis mudas da planta por ano e o comércio até 99.
Se você, brasileiro, está pensando em ir dar uma voltinha no Uruguai para “comprar uns alfajores”, pode esquecer. A lei Uruguaia é só para maconheiros uruguaios, não se aplica aos estrangeiros.
O que considero mais importante da Lei Uruguaia não é a legalização em si, mas o fato de ter criado um mercado fechado e controlado pelo Estado. Além disso, o preço deverá ser módico e tabelado para evitar a concorrência entre fornecedores.
E no Brasil-sil-sil? Como é tratada a maconha?
Vou dar uma pista do caos. Vejam-se os artigos Lei nº 11.343/2006 que tratam do consumo próprio e do tráfico:

Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: 

I - advertência sobre os efeitos das drogas; 

II - prestação de serviços à comunidade; 

III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. 

§ 1o Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica. 

§ 2o Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.

         O que é consumo pessoal? Posso consumir 2 quilos? Ah, tanto faz, a pena não é significativa. Não bastasse a confusão acima, a Lei continua:


Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: 

Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.

         Opa! Agora a coisa ficou séria. Crime? 5 a 15 anos? Mas eu não podia guardar? Ou, como consumir a maconha sem trazer comigo? Em suma, no Brasil, consumir maconha é crime, mas, na prática não há pena. A dificuldade está em distinguir o que é consumo próprio e tráfico. De fato, os juristas não sabem se o uso de drogas é crime ou não no Brasil. Não há lei determinando a "descriminalização" do usuário, mas, segundo o Código Penal, crime é aquilo "a que a lei comina pena de reclusão ou detenção". Portanto, é crime, mas não é.
Infelizmente, o legislador brasileiro, na maioria das vezes, não tem a mínima ideia do que faz. Costumo dizer que o maior problema do Brasil são seus legisladores. Mas, como dizer isso sem atentar contra o próprio povo brasileiro se foram os próprios que elegeram aqueles como seus representantes, democraticamente? Enfim, isso é outro papo.
         Acredito que a descriminalização das drogas em geral é, mais que política criminal, política de saúde pública e, assim sendo – problema de saúde pública -  não deve ser considerada crime.
Se a Holanda, país de primeiro mundo com elevadíssimos níveis de educação, saúde e economia, resolve fazer vista grossa para a maconha e drogas leves para focar seus “escassos” recursos no crimes mais graves, com toda a certeza que poderíamos adotar esse pragmatismo, pois crimes graves temos a escolher e exportar. Com toda a certeza a política de guerra às drogas é um fracasso. Punir um usuário – doente – e aprisiona-lo é, quase que invariavelmente, transformá-lo de usuário de drogas em criminoso. Em outras palavras, fazer com que o usuário deixe de provocar danos somente a si próprio e passe a provocar danos a terceiros.
Bom, mas e aí? Devemos legalizar? Sinceramente, não sei (até eu me decepcionei com a resposta). Isso depende do projeto de Brasil que cada um de nós está disposto a endossar através de seus representantes democraticamente eleitos.
Ilude-se quem acredita que legalizar a maconha acabaria com o tráfico da erva. Mesmo em países que há tolerância como na Holanda, o tráfico existe. Você acha que o usuário de maconha compraria seu baseado na smatshop do bairro, com todo o custo Brasil embutido, em especial nossos tributos galopantes, ou compraria do traficante a 1/5 do preço, senão mais barato? Talvez o pessoal que frequenta as baladas VIPs da moda paguem, mas no geral, acho muito difícil. Por outro lado, abriríamos um mercado de milhões de reais, o qual gerariam tributos e alguns empregos.
Por fim, temos que considerar que os mais recentes estudos das universidades mais prestigiadas do mundo refere que a maconha causa, sim, efeitos neurológicos cognitivos muito ruins, bem como que a maconha fumada no baseado usual traz consigo efeitos semelhantes aos do cigarro.
         Se esse for o ponto chave para a legalização ou não da maconha, acredito que a decisão cabe a cada um de nós, pois somos os senhores do nosso próprio corpo e dele fazemos o que quisermos, desde que o SUS não arque com o custo, claro. O que há de ser mensurado, nesse sentido, são os efeitos que o consumo das drogas causam a terceiros, ou seja, o dano social. Logo, os efeitos da maconha não nos trariam muitos problemas, exceto nos casos em que as habilidades motoras e as faculdades mentais do indivíduo necessitem estar preservadas, como na condução de automóveis. Nesse caso, considero que, se legalizada e ou descriminalizada, deva ter tratamento semelhante aos condutores sob efeito de álcool: tolerância zero, crime.
         Por óbvio, para a legalização precisamos de legisladores muito melhores daqueles que editaram a atual Lei de Políticas Públicas sobre Drogas (Lei 11.343), porque tenho sérias dúvidas se há vida inteligente fora da terra no Congresso Nacional.
Eis aqui um infográfico muito legal, mas não tanto, legalmente falando (isso chega a ser um trocadilho?):

PS: Se você pensa que o Uruguai é o país em que a maconha é a mais liberada, é porque você não pensou em Bangladesh. País minúsculo com muita gente apinhada (1.002 hab./km²), lá a erva é tradicionalmente consumida e simplesmente não há legislação sobre a maconha. É e sempre foi como comprar chá de boldo no mercado: banal."

Para finalizar este post, gostaria de comentar que a mudança no tratamento legal do usuário permitiu, em muitos países, uma diferença nas abordagens e campanhas de conscientização. Vejam que interessante os comerciais abaixo que, a exemplo do que acontece com campanhas de conscientização dos riscos da embriaguez e do fumo de tabaco, agora são destinadas a conscientizar sobre os possíveis reflexos na atenção de usuários de maconha:




  Muitos países estão alterando a sua política de drogas. Assim, logo poderemos ter mais dados concretos dos impactos desta mudança de perspectiva nas sociedades. E você, o que acha desta mudança de perspectiva? Para você, um toxicodependente é um criminoso ou deve ser tratado como doente? E concretamente no caso da maconha, devemos mudar o tratamento legal baseado na premissa de ser uma droga leve e bastante utilizada ou não existem drogas leves?

  Para uma abordagem sociológica, recomendo a leitura deste post, onde o sociólogo Ivan Dourado fala sobre este tema. E quinta-feira, 12 de março de 2015, entra no ar o post sobre os aspectos toxicológicos da maconha, aqui no Paracelsus para todos.
   Também recomendo uma matéria muito interessante publicada na Zero Hora deste último final de semana onde há uma discussão  bem completa sobre este assunto. 
   

6 comentários:

  1. Luciana, neste texto e no do jornal Zero Hora leio uma coisa que eu não sei se eu estou errado, ou se o que estou lendo não é verídico.

    Até onde eu sei a Holanda não proibiu a venda de maconha para estrangeiros. O que aconteceu é que em um primeiro momento se sugeriu isso (e até tentou se fazer) mas por pressão acabaram não fazendo, e ficou a cada local decidir se permite ou não a venda para estrangeiros. Amsterdã, por exemplo, continua permitido e ganhando muito dinheiro com este turismo.

    Eu tenho pena da Holanda, sempre ouço falar em "como eles estão sofrendo com essa política de tolerância", de "como é um caos por aqueles lugares", de "como eles estão voltando atrás, por que não está dando certo". Eu ouço isso a vida toda.

    Legalização "de verdade" é no Colorado e com mais de um ano dessa nova política, o que vemos são bons resultados. Se plantou e se colheu bem. Não é só a arrecadação de impostos, são os novos trabalhos, é o dinheiro que não está sendo jogado fora com políticas de repressão, é o dinheiro que não está mais indo para o tráfico, é a violência que diminui.. até os acidentes de trânsito diminuíram bastante (em contra-partida com a média nacional que teve aumento). Só agora com essa experiência prática que os mitos vão cair por terra e poderemos nos focar nos verdadeiros problemas relacionados ao consumo (bem menores do que os problemas relacionados ao comércio ilegal).

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  2. Boa reflexão! As drogas são e sempre foram ilegais na Holanda. Mas a política de tolerância foi afastada quando uma decisão judicial das cortes holandesas, a qual tem força coercitiva, em abril de 2012 proibiu a venda de drogas para turistas e determinou uma série de medidas acautelatórias para garantir que os cidadãos holandeses continuassem a usufruir da politica de tolerância. Esta decisão durou 6 meses, por isso atualmente pode-se vender aos turistas. A decisão caiu somente pela pressão econômica exercida pelo mercado das drogas.

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    1. É uma questão bem complexa... Não podemos tratar políticas sociais e de saúde apenas com argumentos financeiros, econômicos e produtivos pois isto é sobrepor tais interesses àqueles. Por isso a complexidade da questão! Valeu, João!

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  3. Ótima leitura! Para mim que estou na área da saúde e por muitas vezes tenho um olhar muito focado nesse âmbito foi extremamente agregador a leitura deste post. Percebi que minha visão de mundo estava muito desatualizada e repensei sobre alguns aspectos. Trabalho junto à saúde mental, especialmente com dependência química, há aproximadamente um ano e meio e pude comprovar através de pesquisas cientificas que a maconha não tem uso tão expressivo quanto álcool e tabaco. E quanto aos aspectos clínicos (sintomatologia, abstinência e tratamento) é muito mais maleável quando comparada as drogas lícitas em nosso país. Creio que a política de nosso país é contraditória, pois dentro do Sistema Único de Saúde temos os Centros de atenção psicossocial especializados em atenção aos dependentes químicos, tratando-os dessa forma como "doentes", porém a política os trata como criminosos...Fico me indagando e no fim não consigo chegar à uma posição definitiva! Mas creio que deveríamos nos espelhar nos demais países que deram certo e constituir uma política que consiga colher bons frutos e realmente solucionar as diversas "pendências" que temos acerca desse assunto. Porém, conforme foi relatado pelo Advogado Artur, com os legisladores que temos no Congresso Nacional as esperanças são escassas...

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    1. Obrigado pelas considerações. Mudar de opinião não é problema, nunca. O problema é não refletir ou estabelecer um ponto imutável. Todo radicalismo nos leva, invariavelmente, à ignorância.

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  4. Eu também já mudei de opinião muitas vezes com relação a esse assunto, Nicole. Mas acredito que a melhor postura é entender que é uma substâncias que tem sim consequências negativas (como vou falar amanhã no blog), mas sem dúvida são bem menos devastadoras que outras drogas, inclusive as lícitas. Essa tua observação da problemática da dependência química não ser tão grave na maconha quando comparada a outras reforça isso. Talvez por isso seja o momento de centrar nossos esforços nos crimes mais pesados e tratar, efetivamente, o dependente como doente. Isso requer uma legislação mais madura e não tão confusa como a nossa. Existem no mínimo 2 projetos (que eu tenho conhecimento) encabeçados pelo Cristovam Buarque e outro pelo Jean Willys sobre a política das drogas, mas até o momento, nenhum avanço.

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